Rosa e Crucificação (303)






Primeiro ela chamou-nos a todos. Estávamos sentados e de pé, encostados às paredes, espalhados pela sala que servia de ante-câmara a outra onde se previa que a acção viesse a decorrer. Estávamos entregues a uma intelectualizada espera, forjada na tensão do vai vem que ela imprimia ao tempo.  Ela ia e vinha, atarefada no leva e traz, entre a sala onde nos haveríamos de acomodar e aquele espaço de espera que já era o tempo de ser.

Ela chamou um por um com uma voz pulmonar adocicada a cigarros. E a todos levou para dentro como que para dentro de si. Ela é uma mulher cujo rosto expressivo faz dançar palavras da boca para fora. Ela diz as palavras como o fazem as pessoa do teatro. Límpidas, mas cheias de uma vibração muito particular. Ela e as suas palavras são como as mãos em pele de certas pessoas rudes, cheias de gretas do lavrar que a vida faz nos corpos, das coisas que acontecem. A voz dela nos nossos ouvidos, repetindo o convite de cada vez que voltava a entrar: "Queres vir...". E, um a um, lá fomos levados através da escuridão para uma sala maior, tocados na escuridão que ela construiu para nos tocar nas costas, nos braços e nas mãos, ao lugar que nos tinha destinado. Apresentou-nos a todas e a todos dizendo o nosso nome. E fê-lo pela simples razão de ali estarmos perante o que iria acontecer e por sermos cada um um de nós.

Depois falou da cona e vimos no vídeo lamber os dedos e metê-los na cona. Dois dedos dentro de si e a outra mão sôfrega sobre a primeira. O frémito de um desejo imaginado. Um desejo real e sentido. Tão real como a origem do mundo. Aquilo tudo aconteceu à nossa frente enquanto a noite se fechava definitivamente sobre a pequena cidade. Deliciem-se, este é o meu corpo, tomai e comei-o todo como se a vós mesmos vos comesses. Se a noite cai permite-se que os sonhadores se libertem da razão. Ali, naquele sítio, haveria de eclodir o fundamento de um derramamento sexual que só viria a morrer quando ela se excedeu, quando se ultrapassou num abraço prolongado.

Quer se tivesse tratado de puro erotismo (amor-paixão) ou da sensualidade de um corpo debaixo de uma luz, a intensidade foi tanto maior quanto nos sentimos ameaçados pela intimidade daquela mulher. Tomem lá, isto é tudo aquilo que eu sou. E ela falava enquanto se masturbava no video que acompanhava o que dizia, com voz de actriz a dizer palavras como escrevi que as dizia.
Sentiria como eu o excessivo tormento do amor descarnado a mulher que se sentava a meu lado? Enterrava-se pela cadeira abaixo na esperança de ali não estar sempre que a mulher nua se contorcia no swing da cadeira de baloiço. Foi ainda mais simbólico da verdade última do amor quando a actriz lhe pediu um beijo. Como se lhe pedisse a morte, como se se aproximasse para a ferir. Ela deu-lhe o beijo, mas antes disse,” Só se for na cara, sim?”, e deu-lhe na cara o tal beijo pedido.

Por fim, o olhar transformou-se naquilo a que podemos chamar vício e que resulta da profunda implicação do grupo perante a mulher. O tesão e o estiramento a nenhum outro amor de seres mortais poderia ser dito mais a propósito de que aquilo que ela mostrou. A pequena cidade não está a salvo das incursões voluntárias ao reino da pornografia residual da World Wide Web. Entre todas as mulheres, Rosa e Crucificação, de Mónica Calle.












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