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As mãos trocadas sobre o peito agarram-se aos cotovelos dos braços que lhes são opostos. Os braços cruzados daquela forma fazem a cabeça andar no ar a sentir a viragem do vento na nova estação. Um nariz de cão que é o que tenho e a que já dei melhor uso imprime às pernas um passo com ritmo mas não militar. Marcho pelas entranhas da terra com ritmo beat, quase a três tempos. E assim vou na direcção do acolá onde me disseram estar o que procuro. Foi um tipo gordo e baixo que me disse onde está aquilo que pretendo hoje ver. Disse-me que a coisa que pretendo está ali mais à frente, logo depois de se fazerem sentir todos os sortilégios da vida, na volta fresca das árvores, onde a curva se faz suave e a luz do Sol perturba menos. Agora, com as mãos livres, assobio de chapéu preto na cabeça e vou tirando dos bolsos as coisas que tenho vindo a guardar com o passar dos anos. Saco o que posso cá para fora sincopado pelo andar ligeiro que levo nas pernas, um, dois, três. Um, dois, três. Um, dois, três. Tenho, ora no bolso esquerdo do casaco, ora no direito, risonhos sapos que sabem muito sobre os assuntos da alma, cobras finas e longas conhecedoras de todos os verbos da gramática elementar de lamber chocolates e que também servem de atacadores de sapatos, lagartos de apitar nas corridas de bicicletas, as chuvas de outras monções, gatos de olhar acidulado, pedaços esboroados de pedra-pomes que sobraram de refeições menos ligeiras que fui obrigado a ingerir, estrelas do mar vermelhas para usar ao peito em dias de festas, ursos pardos e outros brancos, pó de talco em garrafinhas de plásticos, espelhos e vidros ópticos, brilhantes, colheres de pau de cabinda, chá verde em folhas, livros de contos eróticos - mas apenas as páginas mais interessantes -, rebuçados de naftalinas finas e todo um pedaço da Índia meridional que ainda ostenta tigres e pavões verdadeiros, alguns episódios da vida íntima daqueles que muito amei, outras coisas. Tenho mais. Tenho outras coisas. Tenho muito mais no fundo dos meus bolsos. Mas não vale a pena dizer tudo o que tenho. Tenho muitas coisas, pronto.

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