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Vai forte e pássaros vindos de todos os lados aquele rio que não é meu. Ouço-os, aos pássaros, voando no céu das nuvens que não me pertencem em círculos altos e febris. (Escrevo enquanto bebo água num copo). O meu rio é mais largo e mais espesso que este daqui. Os pássaros são iguais em todo o lado e não pertencem a ninguém, os rios sim, têm donos e pertencem sempre a alguém. São-nos dados antes de sermos homens feitos e crescem connosco, agarrados a nós, aos pés, às mãos, ao resto. Por isso é que têm segredos os rios, como os nomes das pessoas a quem pertencem, por vínculo natural dos que lhes querem como a irmãos. Se têm peixes, é certo que estes saibam dos assuntos do mundo que se podem ver nos seus olhos grandes e profundos. Mas só alguns de nós sabem ler essas histórias. Leva mais água o meu rio que este daqui e confunde-se na sua cor com o cheiro do mar. E eu estava nisto, sentado tarde dentro em frente das palavras a montá-las em silêncio como faço com as imagens quando vi um anjo negro a devorar ávido as folhas do limoeiro que tenho no terraço. Ficou ali a comer muito sôfrego e a olhar para mim. E eu nada, nem me mexi. Não gosto destes bichos, meios pássaros, meios homens, fazem-me impressão. E fazia música a sua queixada quadrada de burro a mastigar as folhas da árvore. Sim, era música, aquilo que lhe saía dos ouvidos enquanto mastigava. Fechei os olhos e deixei que me levasse aquela música, tal como Ulisses quando amarrado ao mastro do seu barco. Não me mexi. O som era de outras esferas, bem posso dizê-lo que não era deste lado da vida. Chegava-me à cabeça entrando pelos poros da pele. Limpou a boca no braço esquerdo, alisou a pele do corpo e sacudiu as escamas de reflexos azuis dos restos das folhas mastigadas, acenou-me e fez um gesto que se pareceu com um sorriso. Acenderam-se-lhe os foguetes presos nas costas e partiu na direcção do céu dos pássaros. Deixou um rasto de fumo preto com cheiro forte a querosene que me agoniou ao ponto do vómito. Ainda espreitei pela janela a vê-lo por ali acima a descrever uma curva muito subtil. Perdeu-se nas nuvens mais altas, já fora do alcance dos meus olhos. Contra a minha vontade choveu outra vez nessa tarde. (Bebi o resto da água e fui sentar-me debaixo do telheiro para ver cair a chuva de perto).

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