É o 52.


Eu falo muito, lamento. Não posso ficar sem palavras para dizer.
Ficar sem palavras para dizer é muito, lamento. Eu isso não posso.

E foi por esta razão que me dediquei ao vício de construir casas. E fi-lo, desunhando-me, para todas as pessoas que na ilha conheci. As casas construídas apresentavam-se empilhadas sem grande precisão umas por cima das outras, avolumando-se o gigantesco objecto na falta de um sentido estético puro para além do que a visão poderia, na verdade, abarcar. Paredes, telhados e janelas, muitas cores pintavam todas as sombras e jogos de luz. O olhar perdia-se.
A minha construção cresceu até muito alto, atingindo uma descomunal dimensão. Penso que seriam precisos três dias de viagem e muito alimento para atingir o seu topo caminhando entre escadas que levavam a lado nenhum e passagens estreitas. Mas disso não estou certo, dado que nunca ousei lá chegar. Limitei-me, nesse tempo, a observar de baixo e a imaginar como seria a ilha vista de lá de cima. Eu era ainda um pequeno homem e por isso não necessitava de dormir.
Um dia parei diante da obra com as mãos postas na cintura, como faziam todos os grande artistas do meu tempo, como se fosse, eu mesmo, o grande arquitecto do universo e descansei por uns momentos contemplando. Fechei os olhos, acho que foi isso. Fiquei assim naquele estado com o corpo dormente, com os olhos fechados e a experimentar todas as coisas do mundo. Devo ter dormido um longo período de tempo após aquele gesto de cansativa observação. Posso mesmo ter tomado notas para alterar uma coisa aqui e outra ali, antes de adormecer profundamente. Mas não me lembro de mais nada. Um fio de luz branca é do que me lembro bem.
É vento isso que assim assobia aí em baixo? Ninguém respondia. Eu estava muito longe.

Comentários

Pló disse…
Voltei a espreitar. Vi-te preocupado.
Quero dizer-te que as tuas palavras não bateram à minha porta, nem dei que tivessem entrado sem permissão.
Penso que as palavras não nos abandonam, nem nos piores momentos. Somos nós que as dispensamos quando o sentir se torna demasiado denso. Ou demasiado leve.
Quanto aos gatos, já não poderei dizer o mesmo: vive aqui ao lado uma gata gorda e cinzenta, por quem sofri o suficiente para justificar gratidão, que à primeira desatenção minha me abandonou e come, agora, de outro prato, dorme noutra almofada e aprecia outras carícias, desdenhando abertamente a minha presença.
É preciso estar atento aos gatos. São seres susceptíveis. Das palavras não direi o mesmo. Submissas a todas as vontades, limitam-se a enviesar sentidos. É essa a sua única vingança.
Beijo
Pló
Este comentário foi removido pelo autor.
É assim: tenho um espaço onde posso escrever, e faço-o, preenchendo o limite desse espaço. Acontece o mesmo no papel, se está em branco encho-o de coisas, normalmente desenhos; se fica a prumo, se a ideia é semelhante a tudo que ficou riscado, dou-lhe um nome. Assim, se for caso do gato ir parar a casa do outro, já se sabe que tem nome.


Obrigado pelas espreitadelas.

Abraços a todos daí onde o rio corre no mar.
jc disse…
“É vento isso que assim assobia aí em baixo? Ninguém respondia. Eu estava muito longe.”
Não, não era o vento, ou seria? Não. Era eu a assobiar, de certeza. É coisa que faço muitas vezes, não é? Assobio e olho para o lado. Foi isso que me diseram para fazer quando estivesse com cócegas na garganta. Se resulta, não me perguntes. Aqui para nós, acho que não… mas tentar não custa e sempre parece que estamos a fazer qualquer coisa. A assobiar para não mandar uma bisga, claro. Olhaste para o lado? Não? Estava lé eu, se calhar, ou talvez não estivesse… Mas não, sim, era eu. De certeza. Gosto sempre de ver uma bela obra arquitectónica. Como sabes, de palavras não sei e de arquitectura muito menos, por isso, estou à vontade para falar nas tuas obras na ilha, nas casas empilhadas e nos espaços, luzes e sombras, corredores labirínticos e outras merdas (pimenta) quejandas.
Pimenta, pois não se devem dizer asneiras e aquela palavra é asneira. Sempre me disseram que era. Eu duvido, mas, a opinião dos outros é muito importante, como tu também sabes. Não podemos ir contra a opinião dos outros. É pecado. Juro. Desde pequeninino que me ensinaram isso e a não tirar catotas do nariz nem a colar a “chicla” debaixo do tampo da secretária.
Devo também dizer-te que a tua ilha é muito visitada. Serão turistas? Serão técnicos psiquiátricos? (T’arrenego Satanás! Credo! Esta palavra também se não deve dizer. Pode chamar o dito cujo e aí estamos feitos. Acredita. Também é pecado, confirmam os velhos e empoeirados livros que os homens sábios lêem). Será alguém verdadeiramente interessado em arquitecturas de empilhamento e de preenchimento compulsivo de espaços vazios, para não sossobrar?
Tu não olhaste para o lado, decerto. Não, não pode ser. Eu estou na ilha ao lado e tu não viste? Estavas distante uma ova. Não estavas é a ver nada, ou a ver demasiado. Também já me alertaram para isso: não vejas demais senão dás-te mal. Será por isso que me sinto mal há tanto tempo? Tenho agora uns óculos na moda, sem armação. As lentes estão sempre a cair. Mas gosto. Dão-me um ar de …sei lá… intelectual, ou anormal ou animal, que é tudo o mesmo, como bem sabes. Não sabes? Bem, a terminação é a mesma e se a teminação é a mesma, é o que interessa. Bora lá. Agora, sim. Já estou a ver tudo na perfeição. Mas continuo a dar-me mal.
Isto que escrevi tem nexo? Parece-me que não. Talvez tenha. Talvez para ti tenha, que és despenteado da mioleira, segundo dizem as almas bem-pensantes de ti, de mim e de outros assim.
Acho a rima optima.
Mas, como disse acima, eu de palavras não sei. E também, para que serve o nexo? Nexo??? Deve estar mal escrito ou coisa assim. Se fosse sexo, ainda saberia, mas nexo… Isso também, agora não interessa para nada. Já escrevi, está escrito.

Um abraço da ilha ao lado

Jorge

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