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Ah! Vou hoje deixar aos pássaros todos os meus pertences e haveres. Tudo quanto tenho será deles pois temo que se perca o encanto de possuir. Os retalhos de papel onde desenhei as receitas da vida incerta, as fotografias de família que mostram aquelas pessoas de quem perdi o nome da memória, os colares de missangas vindos das aldeias mágicas de certas regiões da África, as penas das aves muito raras e as bolas de naftalina que herdei da minha mãe, tudo, mas tudo mesmo, será deles, dos pássaros. Também lhes darei os meus frascos de cheiros onde guardei anos a fio os aromas das minhas romãs de jardim. Outras coisas. Hei-de dar-lhes outras coisas que são tudo o que tenho. Assim, aos pardais da cidade,
por exemplo, quero deixar-lhes um especial bolor azul-esverdeado que guardo do pão velho que não comi. Aos melros o assobio das manhãs pela rua fora até ao sítio dos pastéis de natas. Aos noitibós, aquela hora especial da madrugada que o sono não chega a tocar. Deixo aos milhafres, em troca de cores para fundos brancos de linhos crus, quase todas as imagens do infinito. Aos outros deixo-lhes o que sobrar do meu espólio pessoal de inventos sem pretensão, de inutilidades, as máquinas que construí para as guerras que não cheguei a travar. Já decidi, vai tudo para os pássaros. E não é de agora esta decisão. Já a tomei há muito tempo. Faltou-me mais cedo a coragem. Deixo-lhes tudo, até o pouco de bom senso que me resta para avaliar clássicas situações de risco. Fico apenas com o penico de esmalte para queimar incenso e alguma roupa de vestir para quando sair à rua. Deixo-lhes tudo, pronto! Vou começar a guardar coisas, novamente. Entretanto, enquanto não chega o Maio dourado, vou esperar para ver a Lua de azeite que vagueia indolente por cima da cabeça virada a sul, a árvore do mel que tenho lá ao fundo no terraço suspenso e o vasto laranjal de muitas cores que há-de aparecer mais tarde ou mais cedo quando o tempo virar bom. Aguardo, também, a chegada de um outro vento para que na sua companhia possa alegre beber vinho e ouvir novas cantigas dos mortos.

Comentários

Sarah disse…
É uma boa maneira de seguir viajando ligeiro, dar tudo aos pássaros, e começar de novo, com outras coisas, para mais à frente, quem sabe, dar a outros pássaros...
Já no que respeita ao vento que aguardas não sei, cuidado com essas cantigas :-)
É o vento esfarela-ossos que vem de Espanha, que anuncia e perpetua um especial Verão neste pedaço de Sul, o corpo tolhe-se, mas é o Verão das ameixas. :-)

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