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Alguém estava a morrer muito lentamente naquele dia de prédios altos. Foi atrás desta ideia simples que o passo me levou a percorrer a longa avenida. Passei por cães e árvores, por pedras levantadas do chão que as nuvens escondiam do sol, pelo vento de brisa de mar que me acompanhou quase sempre pelas costas, pelo calor dos pontos iluminados, pelos muitos carros sem condutores estacionados, pelas pessoas estranhas que nunca conhecera e que, certamente, teriam nome e voz e sorriso para quem as conhecesse. Fui passando por tudo sem alterar a minha forma de andar enquanto esperava calmo o fim desse dia de prédios altos. Ao fundo daquela viagem havia uma espécie de rotunda, e mais carros e cães e árvores, ou talvez fossem apenas semáforos de muitas cores diferentes que confundiam o trânsito, não me lembro muito bem, e parei como que rematando a ideia que trazia na língua. Naquela altura eu tinha uma forma diferente de andar o que me levava a encarar a vida não com menos optimismo, mas usando de outras qualidades que hoje já não tenho. Não era um junkie, nem usava qualquer tipo de substância que me alterasse o sentido da realidade, mas sentia-me um junkie, um tipo híbrido e distante de toda a gente. Mas, devo dizer, a realidade que me era servida sem filtros eu usava-a a meu bel-prazer sem hesitações, sem receios, por isso pensava onde muito bem queria pensar.
O dia estava baralhado com tanta informação disponível em sacos de plástico pendurados nos ramos mais baixos das árvores que ladeavam a estrada principal. Mas era o fim da extensa via, ali onde a rotunda se fazia. Tomei o sentido inverso por ali a baixo pelo mesmo caminho por onde tinha subido, na direcção de um rio que espelhava o mundo. De um lado e do outro moviam-se com grande ruído os prédios por cima das pessoas. Chegavam uns e partiam outros, eram enormes barcos de partir e chegar. Gosto daqueles edifícios e de os imaginar como se fossem gigantescos barcos de pedra. Cada rectângulo de janela era um compartimento de navio que levava alguém para um outro lado qualquer. Senti, subitamente, não existir nem perto nem longe, nem distância a percorrer. Pensei que tudo era possível do ponto de vista do viajante. A morte era um estado transitório entre quem vê partir e vê chegar prédios altos numa rua qualquer de uma cidade de porto. Quando finalmente parei estava cansado de ver prédios altos em movimento, por isso entrei num sítio onde se serviam refeições quentes. Pedi, então, que me servissem o meu frugal almoço que comi sem grande prazer. A comida que sobrou enterrei-a num vaso que havia perto da minha mesa. Limpei a boca ao guardanapo de papel depois de beber toda a água do copo. Saí utilizando o mesmo ritmo de passeio pensante. E fiquei com a sensação que o dia tinha, finalmente, acabado.

Pedi um lápis e um papel a diferentes pessoas na rua. Deram-mos e escrevi loucamente até ser madrugada. Dormi num banco de jardim, é só do que me lembro. Depois deste episódio já era hoje e outras coisas.

Comentários

Sarah disse…
Estes prédios oprimem-me.
Prédios são prédios. Podemos de preferência não habitar neles. Gosto mais do campo, para falar verdade.

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