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O homem das borboletas bateu-me à porta de casa. Abri sem saber quem me procurava porque era dia de me sentir Sheeler's green. Apareceu para me dizer que estava a chover e eu agradeci com um sorriso cego. Os meus olhos como se pertencessem a um deus persa ficam encovados e deixam de ver nos dias assim. Convidei-o a entrar, como sempre faço. Bebemos chá e trocámos emoções de especiarias, comemos bolachas de manteiga. Em silêncio vi que se formavam sobre aquilo que pensei ser o lugar da sua cabeça nuvens de asas de muitas cores que depois desapareciam ao ponto de ficar apenas uma ou duas voltando logo a seguir à forma de multidão. Borboletas, era um mar de borboletas por cima do que pensei ser a sua cabeça.
Como não tinha olhos de ver sonhei com o Sol de Verão a bater nos telhados das casas, pássaros e melancias frescas, o céu rasgado por fios de nuvens tocadas pelo vento. Acreditem que fiquei inundado pelo perene desejo de atingir o limite físico de sentir, como se sentisse uma dor distante e confusa. Era quase música, mas não era música. O dia de hoje não arrancou da memória outro dia como este. (Ainda de olhos fechados) Sobre a roliça aragem como imagino ser o bafo do demo nada me impede de ser indiferente ao anelo, à judiaria que os putos da rua fazem ao cão dócil, ao abandono dos segredos que existem no calor longínquo onde o pasto é uma espécie de azeite em forma de fruto, correrias e cantigas mortas pelo catolicismo de dar aos santos os nomes dos homens aforados ao trabalho. Aqui, neste preciso momento, sou a origem de tudo, sendo eu aquilo que sou, sou o verbo e nada mais.
O homem das borboletas estava a fazer a dança do costume. Fui atrás dele pela casa, enquanto as portas se abriam à sua passagem e de lá de dentro saíam os casacos e as meias e a roupa toda. Fiz estalar os meus ossos magrebinos em silêncio e na boca apavorada levava o desejo de comer laranjas. Imaginei, por isso, outros dias de olhos pregados ao céu da cidade. Segui-o por toda à parte até que desapareceu e voltei a ver como toda a gente.

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