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Sujo-me todo para chegar onde quero. É uma porcaria de se ver. Acontece-me o mesmo quando como e sou obrigado a fazê-lo enquanto penso alto os números da vida. E penso-os e cantos-os e levo-os a todos os recantos do meu bairro dentro da barriga e do bolso. Tenho um bolso sem fundo para que me caibam todos ali muito juntos. Se dali me salta um número e depois outro fico a vê-los e depois sujo-me todo, claro. Mas para compensar estes factos delirantes ando sempre com passo ligeiro e, ultimamente, desenvolvi uma estranha facilidade para ouvir coisas ao longe que, de resto, existem. Por exemplo, ventiladores de casas-de-banho, acidentes de automóvel e gritos de crianças em ruas distantes do meu sítio, golos marcados no estádio Azteca do outro lado do Oceano, perturbações meteorológicas, bandeiras desfiladas nos altos paus de fileira, coisas sem nome.
Passo por sítios onde a chuva é abundante nas horas de maior tráfego. Há lama, há lama por todo o lado. A lama é uma coisa natural neste pequeno país. É por isso que fico todo sujo pelos sítios por onde passo. É por isso que tenho uma lista das minha obrigações visuais para o dia que antecede aquele onde estou, para evitar que me suje no lamaçal dos outros. Por exemplo, para o dia de hoje foi esta a lista de coisas a ver:
a) As folhas verdes de árvores onde elas existam antes de cair;
b) Um burro de ferro fervente;
c) A lama do chá de folha verde;
d) As nuvens da sinceridade presas ao céu voando para o lado de Espanha;
e) Os materiais compósitos à espera do seu fim;
f) As pessoas vestidas de folha de chá verde (procurando o sentido poético da alínea c));
g) Um bolo de arroz sentado numa esquina de Lisboa;
h) O vento azul do teu cabelo de pó de livros.

E hoje vi tudo isto sem esforço.

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