Quarenta e oito (48)


Vou-me embora vestido com o mesmo fato com que me apresentei o ano inteiro. Umas nódoas que não saem, nem escovando com força, ganharam evidência nos últimos dias e tornaram-se mais visíveis à altura do peito. É do mau hábito de comer com as mãos e de me limpar à barriga enquanto escrevo e desenho o meu alimento. Tenho tudo pronto para partir desde a manhã de ontem. Até o burro já zurra para se pôr a caminho. Está excitado, o animal de um raio. Pressente alteração. Encilhei-o sem grande preceito, mas que se lixe, a jornada não será longa e sempre posso parar aqui ou ali para lhe apertar os arreios e verificar a tralha que lhe coloquei no garrote. Levo sobretudo água da chuva que caiu aqui para regar onde faltar mais à frente. Levo-a na boca e por isso não posso falar. Vou por certo parar muitas vezes com o peso que levo. Além do mais, a viagem não será muito longa, como já fiz ver. Assim, o animal também descansa e eu levo mais tempo a chegar. Não sei se quero achegar a algum lado e já coloquei a questão de querer mesmo partir. Enfim, vou-me embora, pronto. Vou-me daqui, do sítio de onde mesmo quando chove o dia é bom e ameno, para o inferno das lantejoulas, das bolinhas de chocolate e do caldo de pescoço de galinha com miudezas da mesma. Espero não vomitar. Espero este ano aguentar o refluxo gástrico à entrada do estômago. Nisto, vou passando os olhos pelas linhas das minhas mãos. E vou pensando que estou mudado. Nas mãos li a mesma história de sempre que começa com uma espécie de perfil seráfico onde pranteiam azáleas do Índico, pimentas de caiena e do reino, pimentões das Américas exóticas e distantes, ervas de perfumes gustativos, tapetes dos desertos que se dão às noivas berberes, tractores de plantar girassóis, tinta-da-china e papel delicado, porras várias, sei lá, é tudo uma distracção. Pois... vou-me embora, espero que o burro se aguente e que beba muita água pelo caminho.

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