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A edição daquele dia fez estalar a vida com uma novidade absoluta. Foi um ar que se lhe deu, pronto. Uma espécie de lugar de perfeição fez abalar o mundo. Foi uma coisa repentina, disseram-me os vizinhos. Estava ali sentado e deu-lhe aquilo, logo ali. Virou-se de pés pelas mãos. Um acontecimento que deixa sempre pregado à clausula do espanto quem o vê. Vomitou uma versão integral de um sutra muito antigo como se fosse um sortilégio e, com aquela lâmpada verde acesa por cima da sua cabeça dando-lhe um aspecto demoníaco, saltava sem parar de um lado para o outro, a dizer coisas de louco. Fugiram todos antes da história acabar. Quando lá cheguei apenas senti o perfumado clarão da madrugada que acabava de aparecer para dar continuidade à sensação de novidade que se instalara naquele sítio.
Ao local começaram outros a chegar: ursos pardos, cinzentos e brancos, todos sem cuecas, atiravam ao ar coristas romenas e apanhavam-nas como se fossem bolas de cristal, logo de perto eram seguidos por um conjunto de sopradores de fagotes, batedores de tambores e bebedores de água da fonte, mijadores públicos, homens que tocavam colheres nas costas de outros homens - vestidos de vermelho e branco -, iguanas malucas, igualmente, despidas, acariciavam com as línguas os plantadores de cravos que carregando com alfaias e sementes, faziam caras feias às línguas meladas de babas de lagartos; havia mulheres de muitas raças dançando com os seios nus e cantando aos gritos, umas tocavam flautas, outras aplaudiam as primeiras. Ah, logo ali, bem colados a si, uns caralhos de cerâmica, enormes a roçar o céu da alegria, e as luvas, e os sapatos dos mortos de outros tempos, encontrados nos cemitérios das redondezas, acariciavam-lhes os tomates hirtos pelo frio da noite. Havia pulgas a puxar carroças carregadas de olhos de lagartos, nêsperas azedas e pelos de macacos. Comedores de uvas em cachos penduradas noutros cachos, mamas assopradas, como instrumentos de músicas, por quem as usava e uma orquestra sinfónica fardada seguia a pé, muito direitinha e com todos os elementos vestidos de igual. Um grande faquir russo transportava, à frente deste cortejo, uma bandeira dourada com letras bordadas. Atrás de si seguiam os anões disfarçados de ministros que atiravam favores políticos a quem os via passar. As caixas de músicas infantis que faziam dançar dançarinas coxas marchavam sem perder o ritmo ao passo de um hino muito usado no tempo deste relato. Os homens de respeito estavam vestidos de preto a olhar de lado para o mundo e seguiam atrás de tudo isto sem pinga de vergonha. E acenavam as famílias de bem que os via passar. Subitamente pararam. E fizeram todos silêncio. Deus, lá de onde costuma estar, alçou uma mão gorda e guardou-os numa grande caixa de fósforos que trazia sempre no bolso. Levou-os, a todos, para a sua casa na Lua que fica depois do céu da aparência. Sabe-se que comeram bolos e que beberam vinho, nada mais, nada mais.
Cá em baixo, a rapaziada, continuou a jogar às fisgas, a fingir que nada se passou. É da metafísica, ao que parece é da metafísica. Ah!

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