Dois (Two)


Apenas pelo Natal se davam tréguas às dores. Saíam dos baús como as jóias e as relíquias da família e apareciam a brilhar nos distintos peitos das tias e dos tios e das afilhadas e dos restante elementos comensais que naquela altura se juntavam a comemorar a efeméride. Estas coisas que trazíamos ao peito como distintivo de família usava-mo-las a nosso bel-prazer, assim como outras mazelas mais do domínio geral, os padecimentos, os ais variados e assimétricos, as nossas pequenas enfermidades e o resto que são as cores com os que os outros se pintavam. Tudo cabia à nossa mesa dado que não sabíamos ao tempo distinguir, tal como ainda hoje o não sabemos, o riso do choro. Chorávamos a rir. Ríamos pelos outros quando também chorávamos. Para nós era tudo a mesma coisa, o riso e o choro. Habe nun ach! Philosophie... É o grito inicial do monólogo do velho Doutor Fausto na tragédia de Goethe que aqui deixo ficar. Éramos, sem o sabermos, seus filhos dilectos. Recapitulando as áreas do saber e a pompa dos graus académicos, o que ele canta é o desencanto do sábio, a angústia da incomunicabilidade do saber, a ansiedade do seu uso:
"...não me gabo de saber nada que valha
nem sequer de ensinar o que quer que seja
aos homens, que os faça ser dignos de inveja."
Quando estávamos à mesa comíamos com as nossas dores de trazer ao peito. Não éramos génios nem sábios, comíamos as coisas boas que apareciam postas em cima mesa. Por vezes comíamos as nossas dores.

Comentários

Mensagens populares