O bom pastor (312)



O Bom Pastor. 140 x 190 cm. Grafite e carvão s/ papel de 200g. 2019.

Por vezes, as palavras amarram de tal maneira a pintura no que se pode chamar a articulação da teoria entre as palavras e as formas visuais que definem os processos da arte que a imagem original desaparece para dar lugar a outra coisa. Tenho nesses momentos a sensação de que existem palavras a mais, ainda que também eu mergulhe nesta pandemia de tentar explicar o que por vezes é apenas para sentir e que se faz para ser olhado. Um pouco por todo o lado o diagnóstico repete-se e perspectiva-se como um elemento aglutinador: há na realidade palavras a mais sobre a pintura, palavras a mais que comentam e devoram a prática da pintura, que vestem e mascaram e transfiguram o “tudo serve” em que quase tudo que é arte se transformou. Levei tempo a precisar o que é necessário ser dito e o que vale a pena dizer, mas não sei ao certo se vale a pena dizê-lo diante de tantas palavras e ideias sobre o assunto. Sob pena de se não ver, não direi muito, portanto.

Entendo a pintura para além dos nomes e das referências do tempo: de um lado a prática, do outro lado, as interpretações. De um lado as questões que dizem respeito à pintura, do outro, a massa dos discursos que os supostos filósofos, os escritores ou os próprios artistas escrevem. A crítica de arte é parte integrante deste último lado, ainda que nem sempre seja o campo da batalha literária como entendo que deveria ser.

A pintura é a forma de manifestação de um conceito de arte perfeitamente identificado, várias vezes morta ao longo do tempo e outras tantas vezes ressuscitada. Não é no entanto nem cadáver, nem entidade a que se possa atribuir número de cidadão. A grande arte da pintura é nada mais que o desdobramento do absoluto. A questão pictórica é resultante da exclusiva utilização de meios próprios da pintura: pigmentos coloridos e uma superfície a duas dimensões. É uma resposta simples que encontra referência no longínquo cachimbo do senhor Maurice Denis e, mais recentemente, em Clement Greenberg.

Não devemos estranhar que uma actividade se sirva dos meios que lhe são próprios. Provavelmente, para dançar farão falta as pernas e o resto do corpo, assim como para correr e saltar livremente. Na pintura, diga-se o que se disser, serão necessários uma mão segura e uma imaginação sagaz. Um olhar treinado e muita marmelada. O espírito analítico que é coisa de médico, é uma urgência imediata comum a quase tudo.

A pintura reduplica através dos pigmentos aplicados sobre a superfície plana. Diz-se que os impressionistas renunciaram às subcamadas de pintura e ao envernizamento para que não nos esquecêssemos que as tintas provêm de latas e tubos de tinta. O conceito tem graça e parece coisa de crítico de arte que se entretém nos rendilhados da história a fazer graçolas. Não acho que tenha sido esta a intenção dos impressionistas, mas que tem graça tem. Contudo, os tubos de tinta eram e são reais. Podemos colá-los directamente na tela, ou apresentar um tubo numa vitrine, ou observar o artista enquanto se encharca de tinta e se projecta contra uma superfície, fazendo-nos lembrar que a tinta é real, que o corpo é real, que o momento é real.

No desenho o real é o pó das grafites e dos carvões. O esforço de juntar as gradações e as sujidades não é observável, é coisa que não se vê, mas é tão real como alguém que se projecta ao vivo como uma esponja carregada de tinta contra uma superfície.

Mas é verdade que as coisas se podem actualizar, trazidas de outras esferas para a correlação básica da pintura que, de facto, não tem que demonstrar mais do que ela é.

Na pintura o medium é uma coisa importante. É-o na medida em que designa algo que é diferente de um suporte ou de uma matéria. É como que designar o espaço ideal na sua respectiva apropriação. Na pintura conquistar o medium significa que nos limitemos à existência dos meios materiais. O problema reside na insistência ( do fazer) em que se coloca em evidência o fim e os meios. Em alguns casos, conquistar o meio significa exactamente o inverso: os meios justificam os fins, negando, assim, a essência da técnica.

A essência da pintura é quase sempre uma questão técnica. Mas esta ideia só se torna consistente à custa da sua assimilação a qualquer outra coisa que pode muito bem ser a autonomia da arte. Será mesmo preciso mostrar que se utilizam os tubos de cores para fazer arte?

Continuo a acreditar que é necessário mostrar que a matéria espalhada sobre a superfície é arte, que não há arte sem um olhar que a veja como arte ( Berger). Não acredito na sã doutrina que pretende generalizar esta questão a partir de um conjunto de propriedades comuns a um conjunto de práticas. Muito honestamente, não me parece que se possa definir um conceito comum que defina as propriedades da pintura, da música, do cinema, da dança, da arquitectura, etc..

Retomando a pintura, é tudo uma questão que reside no olhar. O que eu gosto na pintura é quando, apesar de se não ver, aparece um vento que varre de forma visionária o cenário e que arrebata sem melhor explicação quem o vê para dentro da acção. E depois, à aquele sentir descrito por Benjamin sobre quando o Sr. Proust se desfez em lágrimas pela memória da avó ao descalçar os sapatos.

Como Não Se Vê abriu no dia 14 de Junho ao olhar dos outros.
Até 14 de Julho, no antigo Hospital Civil de Santo André, em Montemor-o-Novo.

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