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Depois, da boca de um cão vermelho, ouvi tudo aquilo que me contou. Este cão era um velho exegeta que há muito havia subsumido à acção em virtude de qualquer coisa que não sei bem o quê ao certo. Pensava em voz alta na minha direcção e ouvi tudo o que me disse com esmerado sentido. Talvez estivesse apenas a pensar em voz alta. Era contudo maravilhoso e orgiástico aquilo que dizia. Posso acrescentar que o que me contou me disse ter sido dito por um cão que fumava, uma coisa assim:
- Um outro cão meu conhecido que vivia entre os humanos acompanhou dois homens que estavam sentados numa mesa no interior de um tal café. Parece que terão decidido sair para respirar o ar fresco da noite. Um dos homens tinha calçados uns sapatos vermelhos pelos quais o cão parecia estar apaixonado, lambia-os sem parar, e parecia sorrir ao fazê-lo. Ao grupo, ter-se-ia juntado uma mulher muito velha que transportava um saco de ossos, enquanto que, lá dentro no café, circulavam os empregados com um ar muito branco e sem expressão facial, satisfazendo os pedidos dos clientes. Um outro homem que palitava os dentes levantou-se, e do interior do fumo, dirigiu-se ao grupo de que falava à pouco. À porta todos fumavam. Um dos homens, a propósito do cão, diz aos outros do grupo que o animal fora um filósofo que se perdera nos meandros de um labirinto metafísico e que um deus menor o transformou em cão. É cão para sempre, terá dito com ar entendido. Entretanto, do fundo do café irrompeu o cortejo fúnebre do patrão. Os empregados levavam o caixão aos ombros e deram umas voltas entre as cadeiras e as mesas. Gemia o clube de músicos de salão nos instrumentos um acompanhamento especial. À passagem do caixão as pessoas tiravam os chapéus das cabeças pelo defunto. Os que choravam não bebiam e bebiam os outros que não choravam, voavam vistosas flores amarelas e brancas. A viúva-cabeça transportava-se nos braços de um amante dentro de uma bola de vidro. Perdera o corpo num estranho jogo de sociedade vindo do oriente, etc., etc.. Ia triste e inconsolável aquela que ainda era a mulher mais desejada do café. Exotismos de raro gosto, nada mais que isso. Os de fora entraram e juntaram-se ao grupo que circulava lento e sombrio no interior. Uma mancha de gente acompanhava com passos curtos o percurso. Subitamente, a música deixou de se ouvir e todos pararam. Foram ditas umas palavras de circunstância que fizeram a viúva chorar com simplicidade. O caixão, por fim, desceu à sepultura aberta, mesmo junto ao piano em silêncio. Sentiu-se aquela coisa que a morte tem. Um frio e silencioso uivo que fez soluçar os presentes.
O cão olhou-me sem terminar a sua história. Fez uma longa pausa de cão e perguntou-me: e de moléculas, gostas de moléculas? Pois eu cá gosto de moles de moléculas. Parecem-se com doces gomas de vinho, sabes? Aquelas bolinhas todas esmagadas umas nas outras, gomas doces?
O cão disse-me isto tudo e foi-se embora. Fiquei ali quase sozinho.

Comentários

Pló disse…
São sempre imprevisíveis esses cães vermelhos. Trazem-nos histórias perturbantes e dificilmente atingíveis. Esquecem-se com frequência que há verdades inalcançáveis para nós, os humanos.
Por isso, quando algum de nós se atreve, ou é impelido, a percorrer caminhos ínvios do pensamento, só lhe resta a hipótese de que se transformar numa qualquer espécie rara, mas realmente esclarecida.
Assim se justifica a criação dessas instituições imprescindíveis que são os hospícios. Espaços de liberdade aprisionada de todos os animais exóticos em que alguns de nós se transformaram, por necessidade imperiosa e inadiável.
Espécie de jardins zoológicos onde é impossível o encontro de linguagens entre tratadores e espécimes e visitantes.

Eu tive um tio que via coisas que eu não via. Era um tio que via coisas que mais ninguém queria, ou não podia, ver. Eu não as via, já o disse, mas, no meu fim de infância, ainda queria acreditar nelas, como quem acredita em fadas e duendes e castelos encantados. Precisava desses mundos, preciosos para a sobrevivência da minha sanidade, frente à insanidade do mundo que me rodeava e que eu não alcançava. Havia, então, uma espécie de entendimento entre a minha credulidade e a sua sabedoria. Depois, julgo que, também eu, me acabei por enredar nas malhas metálicas com que a razão protege todas as ciências que produzem as verdades deste mundo.
O meu tio entendia-se com os grilos que visitava nas searas loiras da planície, a que pertencia, com quem mantinha longas conversas, ausentando-se, precisamente, das verdades deste mundo. Acabou num dos tais hospícios, onde o visitávamos para lhe atirar as bananas, habituais nestes casos.
Acabou por morrer cedo, longe da planície a que pertencia.

Depois dela, o tempo ensinou-me que é preciso saber ouvir todos os animais improváveis que me procuram para me contar histórias tão improváveis como eles.
Também sei, que depois de os ouvir atentamente, fico, como tu, irremediavelmente "quase sozinha".
Ainda assim, penso ser tudo literatura. Julgam-nos por que lado de fora? Amanhã vou tratar dos canteiros das flores de que me esqueci o nome.

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